por Lúcia Helena de Oliveira
Os pesquisadores querem retomar os estudos sobre a mortalha
que teria recoberto o corpo de Jesus
Cristo. Há dez anos, exames acusaram o lençol de ter sido criado na era
medieval, por volta de 1300. Se isso for confirmado, estaremos diante da fraude
mais enigmática e mais bem elaborada da História.
Desde o dia 18 de abril, cerca de 3 milhões de pessoas
formaram filas para entrar na catedral de Turim, na Itália. A cidade, famosa
por sua indústria automobilística, vive o clima de um agitado centro turístico
até o dia 14 deste mês. Seus visitantes trazem na bagagem uma senha, muitas
vezes obtida pela Internet. É ela que dá direito a ver de perto a maior
relíquia do catolicismo, exposta aos olhos dos fiéis durante oito semanas
depois de vinte anos de reclusão em uma caixa metálica. Lá está o pedaço de
pano que é chamado de Santo Sudário.
A olho nu, o que os peregrinos enxergam no centro da catedral,
em uma redoma high-tech, é uma fazenda surrada, estreita e comprida, com 1,10
metro de largura por 4,36 metros de altura. Entre manchas envelhecidas de
sangue, de água e de tecido queimado, percebe-se com algum esforço a imagem de
um homem barbudo e despido. Para os fiéis, não há dúvida: é Jesus
Cristo, que, segundo a Bíblia, foi enterrado naquele lençol. A mortalha
ficou para trás, na tumba, quando ele “subiu aos céus”. Ela simboliza a sua
paixão e a sua ressurreição.
Entre os milhões de turistas, porém, 400 se encontram ali a
trabalho. Entre os dias 5 e 7 deste mês, eles participam do III Congresso
Internacional de Sindonologia (sindone, em latim, significa sudário). São cientistas
e estudiosos de diversas áreas dispostos a reabrir a polêmica em torno da
autenticidade da relíquia.
Os séculos entre a fé e a farsa
Uma carta de 1389 enviada pelo bispo francês Pierre d’Arcis
ao papa Urbano VI é um dos primeiros documentos que se referem ao sudário. E já
fala de fraude. “As pessoas insistem que se trata do sudário. Mas sei que o
linho foi pintado a pena”, escreveu o bispo. No entanto, para o químico Alan
Adler, professor da Universidade Estadual do Oeste de Connecticut, nos Estados
Unidos, é impossível que um pintor tenha conseguido tal proeza. “O tecido tem
várias camadas de fibras e apenas a mais superficial delas apresenta outra
tonalidade, criando o desenho”, conta à SUPER o cientista, que é ateu. “Mesmo o
mais habilidoso dos artistas, com traços levíssimos, tingiria duas camadas, no
mínimo.”
A nitidez no negativo
De qualquer forma, o papa deu crédito à carta do bispo
d’Arcis. “Naquela época, surgiam relíquias falsas em todo canto”, explica o
historiador maranhense José Félix Assumpção, que cursa pós-graduação na
Universidade de Cambridge, na Inglaterra. “O curioso é o sudário de Turim ter
adquirido tanta força até nos dias de hoje.” Curioso, talvez, mas
compreensível. Há 100 anos, em 1898, o fotógrafo profissional italiano Secondo
Pia, ao retratar a relíquia, levou um susto: no negativo, surgia a imagem
nítida do corpo que, no pano, aparece embaçado. Foi esse efeito do negativo que
fascinou tanto cientistas céticos quanto os fiéis.
Em 1978, o Vaticano convidou 24 pesquisadores para examinar
o lençol. Só a Nasa, a agência especial americana, enviou 72 caixas de
aparelhos a Turim. “Os mais diversos tipos de análise foram favoráveis à
autenticidade da mortalha”, lembra o advogado paulista Paulino Brancatto
Júnior, que participou da jornada científica para realizar um documentário. A
Igreja, então, submeteu seu tesouro a mais uma prova, a do carbono 14. Só que
seu resultado foi abalador. O carbono 14 não deixava dúvidas: o linho foi
tecido entre 1260 e 1390 (veja à direita como funciona o teste).
Chama da dúvida
O calor pode alterar a medição da idade do tecido.
Em 1997, o sudário salvou-se de um incêndio. Mas em 1532 foi
atingido por labaredas que lhe deixaram marcas. Em 1503, foi fervido em óleo
pois, se a imagem não saísse, ela seria “santa”. Para físicos da Universidade
Harvard, nos Estados Unidos, o calor afetaria a precisão do teste do carbono
14. Eles usaram a técnica em panos antigos antes e depois de chamuscá-los e
notaram diferenças de até 600 anos nos resultados.
Eis o juízo final?
Entenda a famosa – e polêmica – prova do carbono 14.
A quantidade de átomos radioativos de carbono impregnada em
um objeto de origem orgânica pode denunciar a sua idade. Por isso, há dez anos,
cientistas suíços, ingleses e americanos de equipes distintas resolveram
submeter o sudário a essa prova.
Esta foto amplia a trama do sudário. Para os defensores da
sua autenticidade, uma crosta invisível de micróbios sobre os fios teria
atrapalhado o exame
Direto do céu
Os átomos de carbono 14, que são radioativos, surgem na
atmosfera da Terra quando os raios cósmicos reagem com o nitrogênio no ar.
Aqui na Terra
Essa forma radioativa do carbono, que nasce no ar, acaba
absorvida por plantas como o linho, que depois será usado para fazer tecido.
Para a eternidade
A cada 5 700 anos, a quantidade de carbono 14 no tecido cai
pela metade. Sabendo disso, os cientistas determinam a idade do tecido.
Juventude atômica
Para isso, comparam a quantidade de carbono 14 encontrada na
peça antiga com a quantidade existente num tecido recente.
As manchas de sangue parecem ser legítimas
Em 1978, o teste do carbono 14 foi realizado por três
equipes – a do Instituto Politécnico de Zurique, na Suíça, a da Universidade
Oxford, na Inglaterra, e a da Universidade do Arizona. Seus representantes
sustentam a conclusão. “Sei que o pano não tem a mais remota chance de ser da
época de Cristo”, jura o físico inglês Toddy Hall, da Oxford. “Ou alguém o
produziu, querendo que acreditássemos que era o sudário verdadeiro, ou ele foi
usado num funeral da Idade Média e tudo não passa de uma grande coincidência.”
Lição de anatomia
Haja coincidência: achar, em plena Idade Média, quando as
crucificações já eram coisa do passado, a mortalha de um homem que foi
flagelado e crucificado como Cristo. Agora, se for uma fraude, é uma fraude
genial. O autor calculou tudo. As chagas das mãos estão na altura dos pulsos.
Ali, entre oito ossos, estaria o ponto capaz de, trespassado por um cravo,
sustentar o peso do corpo pendurado na cruz. “Se os cravos estivessem na palma
das mãos, como nas imagens da crucificação, a carne se rasgaria”, diz Brancatto
Júnior. É um detalhe anatômico que, aparentemente, ninguém conhecia no século
XIII.
O químico americano Alan Adler provou que o tecido contém
moléculas que o organismo despeja quando passa várias horas em estresse
extremo. Como em uma sessão de tortura ou, mais exatamente, em uma
crucificação. Sem contar substâncias secretadas nos coágulos das feridas que
são invisíveis e só foram descobertas neste século. “Sem saber da sua
existência, ninguém as teria colocado ali de propósito”, acredita Adler.
Encontram-se ainda no sudário resquícios do líquido pleural,
que enche os pulmões enquanto eles agonizam. Na Bíblia, João Evangelista
descreve que jorrou água do peito do Cristo quando, antes de ser retirado da
cruz, a lança de um soldado romano atravessou-lhe o tórax. Para os médicos
legistas, a “água” era líquido pleural. E, se alguém forjou o sudário de Turim,
esse alguém pensou até nisso.
Corpo torturado
O que se deduz sobre o homem retratado no lençol.
Ele tinha físico de atleta, 1,83 metro de altura e 81
quilos. A coroa de espinhos tem forma de capacete. Nas costas, vêem-se as
marcas dos 39 golpes de chicote que os soldados tinham de aplicar, conforme a
lei romana. Os olhos estão cobertos por moedas do Império Romano. Deviam estar
arregalados, em conseqüência da morte por asfixia – na cruz, o músculo
diafragma no tórax é esticado pelo peso do corpo, não deixando os pulmões se
encher de ar.
O enigma vai atravessar o milênio
O legista suíço Max Frei, especialista em pó, achou o pólen
de 56 plantas no linho, 47 delas típicas da Palestina. Por evidências como essa
é que muitos querem um novo exame de carbono 14, alegando que o primeiro
resultado pode ter sido desviado até por uma espécie de filme transparente ao
redor das fibras, composto de resíduos de bactérias. Esse filme é que poderia
ter se formado na Idade Média.
Mas se o pano é de fato medieval, isso não elimina o enigma
da imagem gravada nele, formada não pelo sangue, mas por “queimaduras”
superficiais nas fibras do linho. Uma hipótese é a de que alguém teria usado um
ácido para pintar a figura. Em altas temperaturas, a substância queimaria as
fibras, escurecendo-as. No entanto, segundo a Nasa, é impossível que alguém
tenha feito tudo isso a pinceladas de ácido ou de qualquer outra coisa.
No final do congresso, este mês, os cientistas decidirão
quais novos testes devem ser aplicados à relíquia católica. Mas eles não serão
feitos agora. O sudário ficará em sua redoma especial, criada sob medida pela
empresa americana Praxair (veja infográfico ao lado), mas longe do público e
dos pesquisadores. Só no ano 2000 os testes serão realizados. Então, com ou sem
mistérios remanescentes, o sudário será exposto novamente. À fé e à ciência.
Para saber mais
NA INTERNET
Sindone – o site oficial da exposição de Turim
http://sindone.torino.chiesacattolica.it
Estampa misteriosa
Como a imagem poderia ser forjada no tecido.
Uma teoria diz que um ácido teria favorecido o
envelhecimento do pano em certos pontos, formando a figura. Mas, para isso, o
pano deveria ter sido submetido ao calor e à radiação luminosa. Por exemplo,
ficando alguns meses intocado e exposto ao sol.
Outra hipótese é de que o envelhecimento do pano nos pontos
da imagem tenha sido provocado por uma espécie de carimbo de bactérias da pele.
O pano teria tocado um corpo e, então, as bactérias teriam se multiplicado na
trama, graças ao calor e às substâncias do suor.
A fotografia computadorizada acima mostra o homem do sudário
em relevo. Esse resultado só aparece quando a imagem é fixada com a ajuda de
calor, como as duas hipóteses admitem. Mas só um gênio, um gênio milagrosamente
genial, teria calculado tudo isso na Idade Média.
Por trás das manchas no pano
As marcas são associadas à paixão de Cristo
A planta dos pés e o sangue que jorrou de suas feridas
Remendos costurados para cobrir partes queimadas do tecido
após um incêndio em 1532
Buracos provocados por outro incêndio, anterior ao de 1532
As pernas
Um fio de sangue escorrendo pelas costas originário de um
ferimento na altura do peito, como se uma lança tivesse atravessado o
crucificado
As costas
Vários pontos de sangue nas costas. Eles lembram as feridas
provocadas pelo flagrum, o pequeno chicote dos romanos que deu origem à palavra
flagelo.
A peça tinha chumbos nas pontas de três tiras de couro que
cravavam a carne do torturado.
A parte detrás da cabeça
A face
O sangue escorrendo dos ferimentos na cabeça
O sangue da ferida no lado direito do peito
O sangue escorrendo dos pulsos. As manchas sanguíneas mais
fortes acusam onde provavelmente foram fincados os cravos nos pulsos
As mãos
As marcas da água usada para apagar o incêndio de 1532
A parte da frente das pernas
Os joelhos
Os pés
A amostra do tecido retirada para exames em 1988
Uma atmosfera muito especial
Um novo esquema para preservar a relíquia católica.
1. Ar modificado
Dentro da redoma onde está exposto o pano existe um coquetel
de gases. Seu principal ingrediente é o argônio. Por ser inerte, ele não reage
com o tecido nem pega fogo. Todos os gases, porém, saem de tanques especiais e
fazem duas escalas até alcançar a caixa de vidro.
2. Pano ligeiramente úmido
No meio do caminho, os gases recebem uma dose de vapor no
umidificador. Se o tecido ficasse em um local completamente seco, em mais
alguns séculos a ligação entre as suas moléculas iria se quebrar. E tudo
viraria fiapo.
3. Do jeito certo
Antes de seguir para a redoma, a mistura passa por uma
estação de controle. Ali, sensores medem a umidade, a temperatura, a pressão e
a pitada de oxigênio necessária para inibir o crescimento de bactérias
anaeróbicas, que dispensam a respiração para viver. Elas ajudariam a destruir o
pano.
4. Vigilância informática
As informações dos sensores vão bater em um computador. Se
algo estiver a mais ou a menos na atmosfera especialmente criada, a máquina
ordenará que os tanques façam as devidas correções.
5. A escala principal
Com tudo acertado, o coquetel à base de argônio entra na
redoma instalada na intersecção da nave em forma de cruz da Catedral de Turim,
na Itália.
6. Total segurança
De hora em hora, uma pequena amostra dos gases vai para
análise. De novo, a pressão, a temperatura, a umidade e a quantidade de
oxigênio são medidas. Os dados são enviados ao computador central, capaz de
realizar eventuais correções.
Para saber mais
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