“Design Inteligente”: o retorno
Roberto G. S. Berlinck e
Hamilton Varela
“Design Inteligente”: o retorno, artigo de Roberto G. S.
Berlinck e
Hamilton Varela*
“Invocar um ‘design inteligente’ para explicar o
‘aparentemente
inexplicável’ é uma tarefa cômoda, que não requer muita
elaboração,
tampouco esforço intelectual”
Roberto G. S. Berlinck e Hamilton Varela são professores do
Instituto de
Química de São Carlos da Universidade de São Paulo. Artigo
enviado pelos
autores ao “JC e-mail”:
Recentemente várias palestras foram apresentadas em diversos
eventos
realizados em universidades públicas e particulares, tendo
sua temática
direcionada para a discussão sobre o “o inexplicável”: a
complexidade da
vida, dos componentes bioquímicos e celulares e até mesmo do
universo.
Consoante o “argumento” dos palestrantes, a única possível
razão para
esta complexidade seria o tal do “design inteligente”, termo
cunhado
para atribuir feições científicas ao criacionismo, mito
bíblico da criação.
As palestras, ministradas na Universidade Federal de
Uberlândia, na
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”,
campus de
Presidente Prudente, na Universidade Federal de Minas
Gerais, na
Universidade Presbiteriana Mackenzie e na Universidade de
São Paulo
revelam o enorme equívoco em conceder espaço ao
“renascimento” do
criacionismo revestido de pseudociência e batizado de
“design inteligente”.
Termo criado por William Paley em 1801, e redefinido por
Michel Behe em
seu best seller intitulado “A Caixa Preta de Darwin”, o design
inteligente propõe uma forma falaciosa para explicar o que
chama de
“complexidade irredutível”. O “design inteligente” jamais
foi aceito
pela comunidade científica por se basear em pressupostos e
argumentos
não científicos. Os argumentos que, supostamente, dão
guarida ao “design
inteligente” têm sido amplamente discutidos e refutados por
Richard
Dawkins e muitos outros cientistas sérios.
Reza a idéia da “complexidade irredutível”: “um sistema
irredutivelmente
complexo possui diversos componentes, todos necessários para
tal sistema
permanecer completamente operacional”. Como a remoção de
quaisquer de
seus componentes tornaria o sistema não-operacional,
argumenta-se que
tal sistema não poderia surgir a partir de um processo
evolutivo
gradual. Logo, tal sistema deveria, necessariamente, surgir
na íntegra,
com todos seus componentes, de uma só vez, refutando,
portanto, a
evolução baseada em seleção natural, através de processos de
variação,
mudança e adaptação.
Para surgir na íntegra, de uma só vez, seria necessária a
intervenção de
uma entidade não humana, um designer inteligente! De acordo
com os
devotos, a existência do designer serviria de curinga a ser
utilizado na
explicação de questões científicas aparentemente sem
respostas. Do ponto
de vista lógico e metodológico, qualquer argumentação que
tenha como
premissa a existência de algo não passível de prova não pode
ser
considerada uma teoria, uma vez que não pode ser refutada. Assim,
o
conceito do “design inteligente” não se sustenta nas suas
próprias
estruturas, ou pela falta delas.
Um dos argumentos corriqueiramente utilizados para sustentar
o conceito
de “complexidade irredutível” diz respeito à segunda lei da
termodinâmica e ao processo de auto-organização.
Henry Morris, criacionista convicto, afirma que
“evolucionistas forjaram
a estranha crença de que tudo se insere em um processo de
progresso, de
partículas caóticas que deram origem aos seres humanos.
(...) processos
reais da natureza jamais sobem montanhas por si só, mas
tendem a
descê-las.
Logo, a evolução é impossível” (1974, The Troubled Waters of
Evolution,
San Diego, Creation Life, p. 111). Indubitavelmente, a
contradição entre as tendências à evolução e ao caos é
apenas aparente.
Por exemplo, células são unidades complexas e constituídas
de inúmeros
componentes e sub-componentes que interagem entre si e com o
ambiente.
Tais sistemas são delimitados do meio por membranas de
permeabilidade
seletiva e a auto-organização ocorre devido à exportação de
entropia,
através de trocas de energia e matéria com as vizinhanças.
Para que tais
processos ocorram é necessária a presença de mecanismos de
interação
molecular, denominados mecanismos de acoplamento local, além
de fluxos
de energia e matéria, os quais fornecem meios para que os
processos
bioquímicos transcorram.
A simulação in vitro de propriedades emergentes de sistemas
bioquímicos
foi comprovada inúmeras vezes, tornando possível a
observação
experimental do surgimento e formação de sistemas
extremamente
complexos, auto-organizados e autopoiéticos (Pier Luisi
Luigi, The
Emergence
of Life, Cambridge University Press, 2006).
Os defensores do ‘design inteligente’ são intransigentes:
“sistemas
bioquímicos são irredutivelmente complexos, e não podem
funcionar se uma
de suas partes for removida. Logo, são fruto de um design
inteligente”.
Tal idéia é defendida por Michael Behe (em ‘A Caixa Preta de
Darwin’).
Tal questão foi abordada pelo notório bioquímico A. G.
Cairns-Smith, uma
década
antes de Behe (em Seven Clues to the Origins of Life: A
Scientific
Detective Story, Cambridge University Press, 1986).
Cairns-Smith chegou às seguintes conclusões: “Podemos
construir uma
máquina planejando-a, fazendo uma lista de seus componentes,
comprando
seus componentes, e construindo tal máquina. Porém, a
evolução não
funciona desta maneira. Não existe planejamento. Não existe
uma previsão
do sistema final. Não se sabe de antemão quais peças serão
relevantes.
Somente os sistemas complexos têm sentido, não os seus
componentes” (op.
cit.).
E ainda: “Constitui-se em um estratagema estéril inserir
milagres para
explicar o desconhecido. (...) Quem poderia imaginar a idade
da Terra ou
o tamanho de um átomo cerca de 100 anos atrás? (...) É
infantil
argumentar que, pelo fato de não poder-se explicar um
fenômeno natural
com o conhecimento disponível, é necessário se invocar o
sobrenatural.
(...) Com tantos quebra-cabeças científicos do passado agora
esclarecidos, é necessário obter-se razões muito claras para
não se
presumir causas naturais para fenômenos naturais” (op.
cit.).
De qualquer maneira, os argumentos de “complexidade
irredutível” de
sistemas bioquímicos tais como o ciclo de Krebs, ou o ciclo
do ácido
cítrico, os quais seriam (presumivelmente) inoperantes sem
uma de suas
partes, são atualmente refutados por inúmeros experimentos
com sistemas
auto-organizados e que apresentam propriedades emergentes,
amplamente
discutidas por Luigi (op. cit). Exemplos clássicos de
sistemas químicos
simples que apresentam comportamento auto-organizado quando
suficientemente afastados do estado de equilíbrio
termodinâmico incluem
a célebre reação de Belousov-Zhabotinsky e vários
osciladores heterogêneos.
Além disso, o conceito de “redundância bioquímica”,
introduzido por
Gerhart e
Kirschner (1997, Cells, Embryos and Evolution: Toward a
Cellular
and Developmental Understanding of Phenotypic Variation and
Evolutionary Adaptability, Oxford, Blackwell) possui função
essencial na
explanação de como sistemas bioquímicos evoluíram.
Fundamentalmente,
segundo os autores, “a complexidade bioquímica é observada
no fenômeno
de evolução bioquímica convergente, nos quais sistemas com
diferentes
histórias evolutivas, tendo se iniciado a partir de
diferentes
substratos e produtos, apresentam funções bioquímicas
similares”.
Ou seja, processos evolutivos naturais deram origem à
complexidade
redundante observada em sistemas bioquímicos. Tais
redundâncias fornecem
as estruturas moleculares e bioquímicas que são a base da
evolução
gradual dos sistemas vivos, os quais eventualmente parecem
apresentar
uma “complexidade irredutível” quando qualquer de suas
partes é retirada.
Tais sistemas bioquímicos exercem funções resultantes da
integração de
inúmeros componentes. A seleção natural resulta na
“retenção” (ou
“preservação”) de alguns destes sistemas bioquímicos
sujeitos a
posteriores modificações e adaptações, enquanto outros são
eliminados.
Logo, sistemas irredutivelmente complexos simplesmente são
“casos
especiais” de sistemas complexos redundantes.
Invocar um “design inteligente” para explicar o
“aparentemente
inexplicável” é uma tarefa cômoda, que não requer muita
elaboração,
tampouco esforço intelectual. Ao longo de sua história, a
ciência
construiu a base do conhecimento da humanidade fundamentada
em fatos
comprovados ou refutáveis. O ”design inteligente” não é nem
um fato e
nem pode ser refutado. Logo, constitui-se em um argumento
falso e
enganoso, sem qualquer sombra de base científica. Ao
contrário do
postulado, não há uma teoria a ser contraposta à evolução
darwinista, o
criacionismo se fundamenta em dogmas, não constitui em uma
teoria.
Mais grave do que defender tais idéias, porém, é ter a
oportunidade de
apresentá-las como sendo uma “verdade” a leigos e estudantes
em fase de
formação intelectual, cujo espírito crítico está em
desenvolvimento. Tal
atitude é extremamente danosa, considerando-se que estas
idéias trazem
em seu bojo uma ideologia religiosa, de fundo subjetivo e
sentimental.
Consideramos que a apresentação do “design inteligente” deve
ser
sistematicamente refutada por educadores, pela comunidade
científica,
pelos meios de comunicação, de todas as formas, pois
constitui uma
ideologia medieval e ultrapassada. A discussão recente sobre
a
realização de pesquisas com células-tronco mostrou como a
visão anuviada
de incautos pode ser danosa ao debate científico sério, tão
necessário à
sociedade.
Dada a urgência do avanço científico experimentada
recentemente,
questões como esta serão cada vez mais presentes. A educação
dos
cidadãos brasileiros, com conhecimento sólido e bem
fundamentado, deve
ser o objetivo de todos aqueles que encaram a ciência como
um dos
principais patrimônios da civilização, capaz de libertar o
homem do
obscurantismo de mitos e crenças.
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